Presidente da ACERN RN
HISTÓRIA DAS COPAS
STRELTSOV O PELÉ DA RÚSSIA QUE SOFREU NO GULAG
Continuação da matéria o Pelé da Rússia...
Diziam que a Rússia viria com o melhor goleiro do mundo, Lev
Yashin. E diziam com razão, porque havia vencido a Bola de
Ouro de 1963.
Seu prestígio foi contestado em meu colégio pela lenda de que na verdade era
basco. Um garoto basco que foi levado pelos russos na guerra. Coincidia pela
idade, e coincidia com o fato de que na época o País Basco produzia goleiros a
granel. Meio Campeonato Espanhol tinha goleiros bascos. E o melhor de todos era
do Athletic
de Bilbao, Iribar. E pelo visto, Yashin também era basco: “Trocaram
seu nome, fizeram com que esquecesse que é espanhol e o obrigam a jogar contra
sua Pátria”, nos explicou lugubremente o padre na aula. Eu tinha 13 anos.
Na hora da verdade, não
deu tanto de si. O gol de Pereda foi à queima-roupa, mas nem viu o de
Marcelino. Ganhamos de 2x1 e fui para casa pensando que preferia Iribar.
Com o tempo soube que esse dia poderia
nos ter sido pior se lá estivesse Eduard Streltsov, um prodígio da época, que
nesse dia, com 26 anos, estava se recuperando de uma longa passagem pelo arquipélago gulag. Teve
uma vida extraordinária que vale a pena lembrar.
Moscovita, teve uma aparição
fulgurante no futebol. Aos 16 anos foi o jogador mais jovem da história de seu
país a marcar na Primeira Divisão. Com 17, foi o artilheiro da competição,
jogando como ponta. Em suas duas primeiras partidas com a seleção marcou dois hat-tricks. Foi
decisivo na medalha de ouro da URSS nos Jogos Olímpicos de
Melbourne, mas não o colocaram na final. Sua vaga foi ocupada por um jogador do
CSKA, para que pelo menos um dessa equipe estivesse em jogo. E começaram seus
problemas.
A questão é que Streltsov
jogava no Torpedo, a equipe da fábrica de automóveis ZIL. Os chefes comunistas
queriam que fosse ao CSKA, a equipe do Exército, ou ao Dínamo, da Polícia. Mas ele se
negava. Era incontrolável nesse e em outros aspectos. Tinha um topete ao estilo
James Dean, era caprichoso e anárquico em seu jogo, amante da vodca e de se
fazer ver. Era, em tudo, refratário a qualquer autoridade.
E vivia em um lugar e em
uma época onde isso não era nada recomendável.
Entre outros personagens, se
chocou com a poderosíssima Ekaterina Furtseva, membro do Politburo e ministra
da Cultura, que pretendeu nada menos do que casá-lo com sua filha. Ele não só
se negou, como fez comentários desagradáveis sobre a jovem.
Nas vésperas da Copa do Mundo de
1958, a seleção da URSS estava concentrada bem perto da dacha (uma casa de veraneio) de um generalíssimo,
de nome Eduard Karahanov, que pouco antes da viagem à Suécia convidou
Streltsov e outros dois jogadores, Ogonkov e Tatushin, a uma festa. Uma festa
russa. Na dacha havia
vodca e garotas. Streltsov saiu dessa folia acusado de estupro. Ele negava, mas
foi impelido a confessar em troca de deixá-lo ir à Copa e lançar terra sobre o
assunto. Assinou...
A URSS foi à Suécia sem
ele e ele foi à Sibéria com
uma condenação de 12 anos.
Em 1964, já nos tempos de
Breznev, e por milhares de pedidos, seu caso foi revisto. Sempre circulou o
rumor de que a versão oficial era uma fabricação malvada. Investigações
jornalísticas posteriores corroboraram esse fato.
Streltsov só saiu do gulag após
cinco anos e meio, poucos meses antes da célebre partida no estádio Santiago Bernabéu.
Estava em condições lamentáveis. Seu primeiro destino, no campo de Lesnoi, foi
um inferno, entre agressões reeducadoras, frio e péssima alimentação. Depois o
levaram a outro, onde o tratamento foi melhor e jogou futebol com outros
colegas de infortúnio.
Quando voltou à luz não
era o mesmo. Adeus ao topete de teddy boy. Adeus à sua velocidade endiabrada. Perdeu
cabelo e agilidade, mas mantinha sua técnica e inteligência para o futebol. Em
1965 venceu o Campeonato Soviético para seu Torpedo de Moscou. Já não era um
ponta elétrico, mas sim um jogador de meio-campo clarividente que foi apelidado
de Pelé russo. Pelé apareceu justamente na Copa de 1958, a
mesma em que ele desapareceu.
Voltou à Seleção, foi nomeado
jogador do ano em 1967 e 1968.
Duas grandes carreiras, uma em
sua arrancada fulminante, outra em sua sábia maturidade, e no meio, entre os 21
e os 27 anos, o vazio. Uma experiência terrível no gulag. Nesse intervalo
ocorreu aquela partida decisiva, em que Yashin não foi tão formidável como nos
diziam.
Depois foi técnico. Morreu de câncer de
laringe com 57 anos. É lembrado em uma estátua na porta do estádio do Torpedo.
Os russos ainda chamam de “passe Streltsov” o passe de calcanhar.
Fonte: El País
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